domingo, 22 de março de 2009

feliz ou infeliz?

via jugular de f. em 21/03/09

O resultado de um inquérito internacional noticiado a semana passada apresenta os portugueses como um povo com um grau de felicidade invejável. Mais de 70% assumem ser "felizes". Não li o inquérito, pelo que não faço ideia de quais os pressupostos. Dir-se-ão (dir-nos-emos) totalmente felizes, ou felizes às parcelas, como em "feliz com o emprego", "feliz com a família", "feliz com a casa", "feliz com o tempo", "feliz com a vida", "feliz no amor"?

Claro que se deve sempre desconfiar destes inquéritos.


São feitos como? Apanham-se pessoas na rua e pergunta-se-lhes se são felizes? Liga-se-lhes para casa? Tipo, que sexo e idade, vive só ou acompanhado, trabalha, estuda, é reformado, e, desculpe lá, é ou não feliz? Quais serão as hipóteses de alguém se declarar, sem mais nem menos e a um perfeito desconhecido, como infeliz? Poucas, certo? No caso do dito inquérito, pouco mais de 3% dos inquiridos o fizeram. Gente que atravessa um desgosto, um luto, um abandono, uma catástrofe pessoal – só pode. Gente a quem pareceria mal dizer-se feliz. O contrário, pois, dos outros, aqueles a quem certificarem-se infelizes por via de um inquérito surge decerto impensável, a não ser que se encare o anónimo perguntador como um confessionário instantâneo, uma espécie de divã psicanalítico grátis. E, convenhamos, isso é de facto sinal de uma grande infelicidade – aquela que se caracteriza por ausência de outros interlocutores, aquela que aproveita uma ocasião como esta para desabafar, fazer contas à vida.

Surpreendente, então, será que, seja qual for o país e a realidade dos inquiridos, não haja uma esmagadora maioria de gente feliz nas respostas. Nada a ver com condições objectivas ou subjectivas, nada a ver com crises ou depressões económicas. Falar de felicidade é coisa séria – a coisa mais séria de todas. Primeiro, porque não sabemos bem o que é: quem é que consegue definir o que é ser feliz? Não é a felicidade um estado transitório, episódico, fugidio, algo que se aquilata na memória mais do que se consciencializa no momento? Haverá alguém que se possa anunciar plenamente feliz, que esteja satisfeito com todo e qualquer aspecto de si e do que o rodeia? Mas, por outro lado, quem estará para passar uma certidão de azedume e inutilidade à sua vida, às suas opções, ao lugar em que se encontra? É de mero bom senso resistir a esse carimbo, e se houver países em que a maioria se diz infeliz só se pode concluir que se trata de gente com um nível de auto-estima desgraçado, que nem se dá ao trabalho de disfarçar.

Há, obviamente, quem olhe para os resultados de Portugal e diga que tanta felicidade só pode significar um baixo nível de exigência ou mesmo uma incapacidade de avaliar a real situação em que se está. Há quem justaponha o ratio de felicidade afirmada aos indicadores económicos – retracção do consumo, alto nível de endividamento, subida da taxa de desemprego, incerteza quanto à manutenção do nível de vida – e assevere que as pessoas não podem estar a falar a sério. Pode alguém dizer-se feliz quando todos os dias se agoira o futuro em promessas de crise e mais crise? A resposta pode estar na pergunta: se nos garantem que devíamos estar e sentir-nos na miséria e não estamos, se nos mostram gente despedida à porta da fábrica e nos dizem que há mais famílias com fome, é mais que provável que, se não temos fome nem perdemos o emprego e basicamente estamos como estávamos há um ano, nos sintamos, por contraste, felizes com o que (ainda?) temos.

Há quem chame a isso resignação – e haverá sempre nisso um pouco de resignação. Mas dizer-se alguém infeliz será sinal de quê, então? De espírito lutador e determinação? Responder "sim, sou feliz" pode ser, afinal, uma mera afirmação de dignidade e resistência. Ou de mero bom senso: a noção de que os nossos problemas, sejam quais forem, não são assim tão graves, e que não estamos preparados para nos dar por vencidos.

(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de domingo passado)

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