quinta-feira, 2 de agosto de 2007

António Lobo Antunes - Testemunho do irmão

«As férias são esse campo de alternância em que um pouco de ócio permite que o acaso visite a nossa vida, o mundo onírico se sobreponha ao real, e a distensão nos ofereça o encontro com a surpresa que está escondida sob a pele do Mundo. Uma vez entrei num hotel onde se lia %u2013 O tempo não precisa parar, aqui os relógios só batem horas, à meia noite em ponto? O Sul de Itália tem estas surpresas, mas até nem precisamos de ir tão longe para sabermos que tudo quanto se pede à pausa do tempo é que ele nos traga uma nova circulação ao sangue. Eu pelo menos consigo imaginar as férias em toda parte, nos sítios habituais e nos sítios longínquos, em solidão e na enxurrada de multidões, tanto quanto no meio de casas silenciosas onde se pode ouvir de madrugada o acordar de um pássaro. Tudo isso tem acontecido. Se a pausa é minha, se o meu ritmo de escuta próprio bate no meu corpo, e eu posso misturar os tempos e inverter os dias e as noites, conforme o que mais amo, então esse tempo são as minhas férias. Não tenho tido férias quando digo que estou em férias, e tenho férias verdadeiras enquanto trabalho, ao longo de todas as estações do ano. É desse calendário marginal que tenho feito surgir as personagens com as quais melhor me entretenho, e as quatro ou cinco páginas que eventualmente poderei deixar ao mundo. Nessa marginalidade, as coisas passam-se assim %u2013 É uma tarde de calor de Agosto, as multidões deslocam-se pelas sombras deixando um rasto de objectos atrás de si. Os lugares de estacionamento estão preenchidos, os pássaros estão ausentes, e até a própria ponte de madeira que conduz ao outro lado da Ria, está repleta de gente que se encontra e desencontra sem cessar. E no entanto, de súbito, um homem vestido de branco sai da fila e encaminha-se para a relva. Não tem tacos, nem bolas, nem acompanhantes, ainda que pareça que deveria ter tudo isso. Decidido, encaminha-se para a relva, pára, olha em redor e sobre uma elevação, senta-se. As sombras das árvores atingem-no, mas não lhe alcançam o rosto, não lhe disfarçam as feições, ele está claro e visível à luz da tarde, a tarde de súbito silenciosa, sem berros, sem ruídos de automóveis, apenas o silêncio dum campo de golf onde um homem, não golfista, se senta para descansar. Só isso, e no entanto eu ouço o bater do taco na bola, o seu roçar pela relva, a entrada no buraco, as palmas das árvores ao longe. Como se entre o homem e a paisagem houvesse um Blow-Up agindo, um Antonioni escondido atrás dos arbustos, recebendo esses sinais. E eu imagino os sinais, aquela figura de um homem já idoso, desajustado na paisagem, regressado sem se saber de onde, estranhamento imóvel, estranhamente sentado onde não deveria estar, e a pouco e pouco, começo a vesti-lo com a matéria que trago comigo. Estendo-lhe a Verónica com a qual tapei o meu pão. O homem tem o rosto redondo, o talhe mediano, regressou aos campos de antigamente, vem disfarçado de turista, um turista que praticasse o golf que não pratica, um antigo emigrante que regressa no meio de Agosto, e visita, disfarçado, os primitivos lugares que ainda reconhece. Tenho a certeza. Do outro lado da multidão, lá está ele. A surpresa é tão grande que não consigo falar. Como não? %u2013 Há um ano que ando a escrever sobre ele, sem o saber. Aquele homem chama-se Walter Dias, e nas minhas páginas nunca regressará à pátria. Mas ali, no plano da realidade, o homem voltou, está na minha frente, sentado. Se for verdade o que penso, o homem retirará o boné, limpará a testa, irá levantar-se, cruzará o campo de golf como se atravessasse um granzoal, e desaparecerá no fundo azul da paisagem. E assim mesmo acontece, tal e qual. O que faz aquele homem, eu antecipo. Sou sua dona e seu escriba. Quando ele partir, vou poder sentar-me no mesmo local, pedir que me tirem uma fotografia, e escrever aquilo que atesta o que conto %u2013 Ria Formosa, 28 de Agosto de 1996. Essa história iria chamar-se O Vale da Paixão, fruto de vários encontros da noite. Assim acontece. Não me peçam, pois, que saia das minhas férias. Quero ficar dentro delas até ao fim da vida. Se me atrasar demasiado com os livros, é porque alguém me mandou regressar ao outro horário da existência, mais cedo do que devia.»

Autor. João Lobo Antunes
Fonte: Jornal de Letras de 19Jul2007


Nota Pessoal
Alguém percebe este texto?
Rui Moio

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