sábado, 9 de setembro de 2006

Joahim Fest - prefácio de No Bunker de Hitler

No Bunker de Hitler: os Últimos Dias do Terceiro Reich
JOACHIM C. FEST

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Prefácio

A história recente desconhece qualquer acontecimento catastrófico comparável ao ocaso da Alemanha em 1945. Jamais, até então, o declínio de um império havia custado tantas vidas humanas, arrasado tantas cidades e destruído regiões inteiras. Harry L. Hopkins, conselheiro dos dois presidentes americanos durante a guerra, estava correto ao comparar a cidade de Berlim em ruínas à Cartago aniquilada, trazendo à imagem a alvorada da história. As privações e o sofrimento pelos quais aquelas pessoas passaram não se resumiam aos horrores inevitáveis de uma derrota exacerbada pelo poder de destruição da guerra moderna. Mais do que isso, parecia que uma força condutora se manifestava na agonia que pôs fim ao império de Hitler. Ela impedia que seu domínio simplesmente terminasse e se empenhava em levar o país como um todo à ruína, literalmente. Assim que chegou ao poder e, posteriormente, repetidas vezes, Hitler deixou claro que jamais capitularia. No início de 1945, ele assegurou ao seu ajudante-de-ordens da Força Aérea, coronel Nicolaus von Below, o seguinte: “Pode ser o nosso fim, mas levaremos junto o mundo.” Hitler sabia, havia muito, que a guerra estava perdida. Os primeiros comentários nesse sentido já haviam sido feitas em novembro de 1941. Entretanto, sua força destruidora ainda teria muito fôlego. Durante os últimos meses, um tom de júbilo embasava todos os apelos para perseverar e exortações para defender o território, evidente na seguinte exclamação de Robert Ley após a destruição de Dresden: “É quase um alívio! Passou! Não seremos mais desviados pelos... monumentos da cultura alemã!” E Goebbels falou dos “grilhões destroçados” que haviam sido “igualados à terra”. O próprio Hitler já havia ordenado no outono de 1944 e, mais uma vez, através da chamada “Ordem de Nero”, de 19 de março de 1945, a demolição de diversas instalações vitais para a manutenção da vida - indústrias e centrais de abastecimento, ruas, pontes e sistemas de canalização -, de tal forma que apenas uma “civilização extinta” caísse em mãos inimigas. Hitler passou aqueles meses finais da guerra no bunker que ele havia mandado construir no início da década de 1940. Dali, de uma profundidade de quase dez metros, ele comandava exércitos há muito abatidos e ordenava batalhas decisivas que jamais seriam travadas. De Claus Schenk von Stauffenberg, autor do atentado contra Hitler, em 20 de julho de 1944, veio a seguinte exclamação após contemplar o quartel-general betonado do Führer: “Hitler no bunker - esse, sim, é o verdadeiro Hitler!” Com efeito, essa relação entre o frio, a ânsia aniquiladora e alienada da realidade, e o páthos operístico que orienta as decisões de Hitler nos últimos tempos revela muito sobre suas características mais marcantes. É nestas semanas, durante as quais ele, mais do que nunca, se afasta do mundo encarcerando-se no bunker, que seu comportamento manifesta com maior precisão aquilo que o compeliu durante toda a vida. Condensado e intensificado, revive-se tudo mais uma vez - seu ódio pela humanidade, a solidificação de padrões de pensamento arraigados desde cedo, uma tendência ao impensável, que, durante tanto tempo, levaram-no de vitória em vitória - antes do fim iminente. Um dos grandes espetáculos que ele havia apreciado durante toda a vida, no entanto, ainda estava por vir e, provavelmente, seria ainda mais grandioso do que o imaginado. Para compreender e imaginar os acontecimentos, deve-se ter em mente a autoridade indiscutível que Hitler ainda emanava, apesar do consenso geral sobre sua debilidade. Por vezes, até parece que sua aparência senil e o visível esforço que fazia arrastando-se entre as dependências subterrâneas fortalecessem o efeito sugestivo que suas aparições geravam. Era raro alguém que ousasse contradizê-lo. Generais experientes e oficiais altamente condecorados emudeciam durante os informes diários, mantendo-se impassíveis a muito custo. Assim, também, seguiam as ordens que lhes eram dadas, por mais que o desvario e a insensatez fossem patentes. Para todos esses e alguns outros eventos, este relato fornece incontáveis exemplos, freqüentemente consternadores. Eles conferiram aos acontecimentos uma singular dramaticidade. Tanto mais surpreendente é a “luz da dúvida” que paira sobre o que se passava no bunker do Führer. Essa expressão tem sua origem no historiador britânico Hugh R. Trevor-Roper, autor da primeira descrição confiável desse período em Os Últimos Dias de Hitler, título do levantamento minucioso de dados que publicou já em 1946. Até hoje, essa luz continua fraca. Há, por exemplo, quatro versões contraditórias de testemunhas próximas do suicídio de Hitler. Situação semelhante ocorre em relação ao paradeiro dos corpos do ditador e da mulher com quem contraíra matrimônio na noite anterior. O mesmo acontece com a suposta investida soviética sobre a Chancelaria e com muitos outros fatos. O ceticismo em relação às descobertas deve-se, em parte, ao fato de as investigações críticas, inclusive as realizadas por Trevor-Roper, somente terem começado meses após os acontecimentos, quando muitas testemunhas importantes já haviam desaparecido na confusão da guerra ou em prisões soviéticas, estando, portanto, inacessíveis. Não só incontáveis patentes da SS que faziam parte da guarnição da Chancelaria, bem como oficiais da Wehrmacht1 da região de combate de Berlim, funcionários do bunker e, até mesmo, os dentistas de Hitler retornariam à Alemanha somente em 1955, após a visita de Adenauer a Moscou. Foi assim que, de repente, inúmeros informantes sobre um dos acontecimentos incontestavelmente mais importantes e graves da história da Alemanha ficaram à disposição. A oportunidade de interrogá-los, entretanto, foi desperdiçada. Na ocasião, nem o acontecimento em si, nem seus participantes imediatos deveriam despertar grande interesse. Havia muitos motivos para tal. Sem dúvida, um deles era o fato de a queda do Reich ser encarada como uma catástrofe nacional. Mas a nação já não existia, e o conceito de catástrofe acabou, com o passar do tempo, tornando-se mais uma vítima dos debates alemães em torno de sutilezas. Para muitos, “catástrofe” ecoava por demais “destino” e renegação de culpa, como se tivesse sido provocada por uma repentina nuvem de temporal histórica. Além disso, o termo não englobava a idéia da libertação, que, no entanto, está imperiosamente associada ao ano de 1945. Essa foi a primeira motivação para o estranho descaso não só durante a investigação dos acontecimentos, mas também ao proteger as fontes. Apenas alguns repórteres históricos, em sua maioria de origem anglo-saxônica, interessaram-se pelo tema a partir da década de 1960 e começaram a entrevistar aqueles que haviam presenciado os fatos. Também desempenhou um papel importante o fato de a história, como ciência, começar a descobrir, justamente naquela época, a importância das estruturas no processo histórico e, dito de forma simplificada, começar a considerar as relações dentro da sociedade muito mais importantes do que os acontecimentos em si. A necessidade elementar da presentificação, base para toda reflexão histórica, passou a não ser mais considerada científica, assim como a técnica narrativa. Ao mesmo tempo, qualquer tema histórico de caráter dramático era difamado, como se sua descrição fosse, necessariamente, sensacionalista. Na verdade, a geração dominante de historiadores, que se caracteriza pela atração por detalhes, evita os grandes acontecimentos, especialmente aqueles com grande carga de tensão. Às vezes, porém, o cronista faz bem em deixar a lupa de lado. A relação que tudo evoca entre si, a qualquer tempo, também tem seu significado e revela fatos que uma observação detalhada jamais traria à tona. Este livro foi escrito com essa intenção. O pontapé inicial foi dado há um ano e meio, quando redigi um texto sobre “o bunker do Führer”, minha contribuição à coletânea de Etienne François e Hagen Schulze, Deutsche Erinnerungsorte. O ensaio, forçosamente curto, que descrevia a história do palácio da Chancelaria na Wilhelmstrasse, apenas dava uma idéia do que foi o último dia na vida de Hitler, além de esboçar os acontecimentos posteriores. Após o lançamento do livro, chegaram várias solicitações de uma bibliografia que desse, ao menos, uma idéia abrangente do que foi o declínio do Reich. Só então, dei-me conta que, fora algumas poucas publicações em muitos pormenores já ultrapassadas, praticamente não havia nada acessível, em conformidade com as mais recentes descobertas, que descrevesse os abomináveis eventos ocorridos naquelas semanas. O mesmo ocorre para os acontecimentos posteriores, quando, caído o pano, a peça sangrenta continuava a ser representada na antecena, de acordo com os humores da história. Os autores, citados ao final deste livro junto com suas obras, ampliaram consideravelmente meu entendimento do desenrolar dos acontecimentos. É evidente, entretanto, que falta um panorama que destaque não só o processo em si, mas também os aspectos importantes que teceram o pano de fundo. Esta exposição não pretende nem pode ser mais do que um ponto de partida. Ela se autodenomina um “esboço histórico”. Em quatro capítulos narrativos, descreve os eventos turbulentos - vergados sob a pressão exercida pela fatalidade inexorável que se aproximava -, que se desenrolavam tanto no mundo do bunker quanto na capital condenada, que abismava num redemoinho de destruição. Entremeadas, há quatro interpolações reflexivas menores, que aproveitam um gancho deixado, anteriormente, na descrição da marcha dos acontecimentos. Tanto as descrições quanto as reflexões são imprescindíveis para a compreensão daqueles 14 dias de horror. Se historiar implica resgatar partes de existências vividas, o declínio diligentemente provocado por Hitler e executado com solicitude por incontáveis subalternos exigirá do texto histórico uma perspectiva necessariamente abrangente. Ele não deve deixar de mencionar as decisões irracionais da liderança - e como chegaram a esse ponto - nem o medo e o espanto que se seguiram. Da mesma forma, deve descrever a confusão emocional e mental na qual se perdeu a maioria dos atores; além dos momentos profundamente cômicos que, eventualmente, congelavam todo aquele horror. Mas, principalmente, esse texto histórico deve deixar transparecer, nem que o faça vagamente, o pesar pelo absurdo que se faz sentir ao refletir sobre a incessante força aniquiladora da qual é feita a história. Um país in extremis: as próximas páginas discorrem sobre isso e, necessariamente, também, sobre as circunstâncias que levaram a essa situação, tornando-as compreensíveis. Capítulo Um O início da batalha Às três horas, foguetes de iluminação ascenderam ao céu noturno e banharam de um vermelho intenso a cabeça-de-ponte perto de Küstrin. Após um instante de silêncio angustiante, o céu veio abaixo, fazendo tremer as margens do Oder muito além de Frankfurt. Como que acionados por um fantasma, sirenes disparavam em diversas localidades entre Küstrin e Berlim, telefones tocavam e livros caíam das prateleiras. Com vinte exércitos e 2,5 milhões de soldados, mais de 40 mil lançadores de granadas e artilharia de longo alcance, bem como centenas de órgãos de Stalin,1 somando trezentos tubos por quilômetro, o Exército Vermelho dava início à batalha, em 16 de abril de 1945. Nas cercanias dos lugarejos Letschin, Seelow, Friedersdorf e Dolgelin, imensas colunas de fogo arrojavam-se às alturas e construíam uma parede formada de relâmpagos, projéteis de pedaços de solo e destroços voadores. Florestas inteiras foram consumidas pelo fogo. Posteriormente, alguns dos sobreviventes descreveriam furacões em brasa, que assolaram aquela região e transformaram tudo em fogo, pó e cinzas. Meia hora depois, o barulho infernal cessou subitamente, dando lugar a segundos de silêncio asfixiante, durante os quais só se ouvia o crepitar do fogo e o uivo dos ventos. Em seguida, o céu na linha de frente soviética foi iluminado por um raio de luz perpendicular que partia de um holofote e dava sinal a outros 143 holofotes, dispostos a uma distância de 200 metros uns dos outros, para iluminarem diretamente o campo de batalha. Aqueles feixes luminosos ofuscantes revelavam uma paisagem lunar e somente interrompiam seu caminho nas colinas de Seelow, objetivo operativo do dia do comandante-em-chefe da 1ª Frente Bielo-Russa, marechal Georgi K. Zhukov. A seguinte ordem de Zhukov deu início à batalha: “O inimigo deve ser eliminado no caminho mais curto para Berlim. A capital da Alemanha fascista deve ser ocupada e, sobre ela, a bandeira da vitória deve ser hasteada!” O dramático espetáculo luminoso, apelidado pelos estrategistas de “a arma milagrosa” de Zhukov, provou ser um fracasso de alto custo. Apesar da oposição, o marechal ateve-se ao propósito de “ofuscar” o inimigo, já confuso e desalentado após o fogo contínuo, até tirá-lo de combate. Dessa forma, as colinas que ficavam por trás e se elevavam a uma altura de, aproximadamente, 30 metros intercalando vales e encostas poderiam ser atropeladas logo no primeiro ataque. Porém, a espessa cortina de fumaça e a bruma que o fogo cerrado haviam estendido sobre a planície não só interceptavam a luz dos holofotes, bem como desorientavam os soldados soviéticos no alvorecer leitoso. Além disso, constatou-se que o alto comando havia calculado mal a dificuldade daquele terreno intransitável, recortado por canais, pântanos e regos, e que, como sempre na primavera, encontrava-se inundado. Caminhões de tropas, tratores e equipamentos pesados de toda sorte acabaram presos naquele lodaçal, derrapando cada vez mais fundo e, finalmente, sendo abandonados. Decisiva, entretanto, foi a ordem do general Gotthard Heinrici, comandante do Grupo do Exército Weichsel, já familiarizado com essa tática de guerra russa. Pouco antes do início da batalha, ele retirou as posições defensivas dianteiras, de forma que o fogo inimigo atingiu, predominantemente, o vazio. Enquanto as unidades de infantaria inimiga - escoltadas e comandadas por uma maciça força blindada, com as bandeiras ao vento e ao som de gritos estridentes - saíam de dentro da cortina de fumaça; as forças de defesa - consideravelmente mais fracas, formadas de sobreviventes de diferentes unidades aniquiladas - aguardavam até que os inimigos estivessem próximos o bastante e atiravam praticamente a esmo no conjunto de sombras. Simultaneamente, centenas de canhões antiaéreos com os canos abaixados abriam fogo assim que os tanques que se aproximavam em meio ao tropel ganhavam contornos na luz difusa. Ao raiar do dia, o ataque havia sido contido, com grandes perdas do lado dos agressores. À primeira derrota, Zhukov permitiu que se seguisse uma segunda. Decepcionado e desesperado com o fracasso, e pressionado por um visivelmente irritado Stalin, Zhukov ordenou, mudando a ofensiva previamente planejada, a mobilização de duas divisões de blindados que, antes, aguardariam na retaguarda. Originalmente posicionadas para o momento em que a barreira de defesa alemã abrisse uma brecha maior, agora se adiantavam para o campo de batalha, criando uma confusão ainda maior na retaguarda da tropa combatente. Elas abriam passagem por entre unidades desorientadas em ruas obstruídas, impediam a mudança de posição da artilharia e bloqueavam as rotas de acesso para material de reabastecimento e reforços. Além disso, como elas tinham entrado em combate sem qualquer coordenação, acabaram criando tal caos que, sem muita demora, chegou a paralisar toda a operação soviética. Um dos comandantes de Zhukov, o general Vassili I. Tschuikov, registrou, na noite de 16 de abril, que as unidades soviéticas não haviam cumprido suas ordens e, em parte, não haviam avançado sequer um passo. A intenção de ocupar Berlim no quinto dia da ofensiva havia malogrado. No quartel-general de Hitler, o abrigo subterrâneo no terreno da Chancelaria, o ataque havia sido aguardado com um misto de impaciência, ansiedade e resignação entorpecida. Já as notícias dos primeiros êxitos fugazes da resistência provocaram o recrudescimento primeiramente confuso e, em seguida, quimérico, de esperanças na vitória. Ainda assim, Hitler ordenou os preparativos para a defesa do bairro que sediava o governo e, em especial, o terreno da Chancelaria, posicionando artilharia antiblindados e lançadores de granadas e providenciando canhoneiras. À tarde, ele deu uma “ordem do dia aos combatentes da frente oriental” que despertou neles a fúria exterminadora necessária para aniquilar o inimigo mortal - o judeu-bolchevique - e que expressava a convicção de que o ataque asiático também “desta feita... sangraria frente à capital do Império Alemão... Vocês, soldados da frente oriental, sabem”, continuava, “que destino ameaça, principalmente, as mulheres e crianças alemãs. Enquanto os velhos, homens e crianças são assassinados, mulheres e moças serão humilhadas como prostitutas em casernas. O resto marchará em direção à Sibéria”. No decorrer da ofensiva de janeiro, o Exército Vermelho não só havia alcançado o rio Oder, mas também conseguira atravessá-lo em diversos pontos da região de Küstrin, aproximadamente 30 quilômetros ao norte de Frankfurt. Batalha após batalha, o inimigo conseguira construir uma cabeça-de-ponte de quase 40 quilômetros de comprimento e, em certos trechos, até 10 quilômetros de profundidade, que ameaçava toda a posição de Nibelungen até o rio Neisse. As forças alemãs somente começaram a cavar trincheiras em Berlim e ao redor da cidade no início de março, quando também construíram posições fortificadas e posicionaram barreiras antitanque. Entretanto, logo que as tropas soviéticas se detiveram, a construção do sistema de defesa da cidade, por mais provisório que fosse, cessou, inexplicavelmente. A interrupção das obras foi provocada pelo próprio Hitler, que teimava cada vez mais, que a defesa da capital já deveria acontecer às margens do Oder e nenhuma unidade deveria abandonar a posição à qual havia sido destinada. “Sustentar ou sucumbir!” era o lema repetido nas incontáveis ordens e nos apelos para perseverar. As forças armadas soviéticas enfrentavam o 56º Corpo Blindado do general Helmuth Weidling e, mais ao sul, principalmente o 9º Exército sob o comando do general Theodor Busse. O general Heinrici, sob cujo comando se encontravam as duas unidades, havia advertido, em vão, para o perigo de serem encurraladas no caso de Zhukov conseguir romper a barreira alemã; além de haver alertado repetidas vezes que o fim estava próximo, devido à carência de efetivo experiente na infantaria, de munição e de reabastecimento de toda a sorte, e ao esgotamento extremo das tropas. No entanto, a convicção obstinada de Hitler de que o desejo suplanta qualquer obstáculo material, acrescida de vagas e jamais cumpridas promessas jactanciosas de Göring, Dönitz ou Himmler, trazia àquele grupo - pelo menos, temporariamente - a esperança há muito enterrada e mantida artificialmente viva apenas por Hitler. No fim, alguns batalhões de colunas civis foram transportados, de ônibus, à linha de frente para deter o exército de Zhukov e seu Corpo Motorizado. Enquanto o rádio anunciava que “milhares de berlinenses seguiam para o front com suas unidades”, a missão de parte deles já havia terminado. Aviões de caça russos, que já controlavam todo o espaço aéreo ao redor da cidade, haviam interceptado e destruído algumas colunas de viaturas a meio caminho com poucos ataques rasantes. As previsões de Heinrici se concretizavam com exatidão. Depois de formar novamente suas unidades, Zhukov ordenou mais ataques ao escurecer. Tanto maior foi a crueldade imposta quando soube que seu rival ao sul do front, marechal Ivan S. Konjev, aparentemente havia tido maior êxito em suas manobras. Konjev não só havia conseguido atravessar o rio Neisse, na região da Lusácia, em mais de 130 lugares e, com isso, garantir o sucesso da ofensiva; mas também passou a crer que, agora, dispunha de excelentes motivos para reivindicar novamente sua participação na conquista de Berlim e contestar, no último instante, o troféu de vitória prometido a Zhukov. Tinha início uma competição silenciosa, incitada por Stalin com astutas insinuações contra Zhukov que, entrementes, havia caído em desgraça. Quando, durante uma conversa com o ditador, Konjev pediu permissão para marchar com sua ala direita em direção ao norte, passando por Lübben e Luckenwalde, de forma a alcançar em poucos dias Zossen, no limite da cidade de Berlim, Stalin perguntou se o marechal sabia que o “quartel-general do exército alemão” se encontrava em Zossen. Ao “Sei” lacônico de Konjev, seguiu-se a resposta de Stalin: “Está bem, estou de acordo. Que os dois exércitos de blindados avancem sobre Berlim.” Era quase meia-noite quando, mais ao norte, no setor central do front do Oder, as tropas de Zhukov finalmente alcançaram as primeiras casas de Seelow. A batalha travou-se durante algum tempo em torno daquelas colinas em forma de ferradura. Depois, as unidades da Wehrmacht, uma verdadeira colcha de retalhos de unidades anteriores, cá e lá com um décimo do potencial do inimigo e completamente esgotados, acabaram batendo em retirada. Além disso, Heinrici estava cada vez mais preocupado com a possibilidade de as unidades de Konjev, que avançavam em ritmo acelerado, de repente surgirem pela retaguarda e cercarem o 9º Exército. No dia seguinte, assim que chegou a informação de que uma de suas unidades de elite, a Divisão de Pára-quedistas posicionada nos topos das colinas de Seelow, havia debandado em pânico, Heinrici pediu uma ligação para o bunker de Hitler. Como já havia acontecido várias vezes, no entanto, os comunicados urgentes deparavam-se com a mais absoluta incompreensão. A sugestão de retirar as tropas da fortificação Frankfurt/Oder e levá-las para cobrir um rombo quilométrico nas linhas de defesa foi negada friamente. E, também, mais tarde, quando ele pediu autorização ao recém-promovido chefe-geral de Estado-Maior, general Krebs, para recuar suas próprias unidades, ouviu apenas um suspiro desolado do outro extremo. Krebs disse, então: “Hitler jamais concordará com isso. Mantenham todas as posições!” Por volta de 19 de abril, as colinas de Seelow até Wriezen, mais ao norte, estavam em mãos russas; e o corredor no meio, que um viajante, há menos de um século, havia descrito como “terras longínquas e maravilhosas - um reino de paz, cor e aroma”, não passava de uma região desfigurada por crateras. Daí para a frente, o restante da linha de defesa alemã ia se desfazendo aos pedaços, em batalhas localizadas. De acordo com informações soviéticas, a ofensiva custou ao invasor 30 mil vidas, enquanto cálculos mais confiáveis chegam a contar 70 mil mortos, contra as 12 mil perdas do lado alemão. A distância até Berlim mal chegava a 70 quilômetros, e não havia nenhuma linha de frente contínua no caminho, apenas pontos de apoio e alguns vilarejos, bosques ou elevações protegidas por unidades isoladas. Dois dias depois, a artilharia soviética de longo alcance deslocada às pressas em direção à cidade, já lançava as primeiras granadas sobre a Hermannplatz em Berlim. Elas provocaram um banho de sangue entre os passantes inscientes e as filas de compradores diante da loja de departamentos Karstadt. Quase uma semana antes, tropas americanas haviam alcançado o rio Elba, na altura de Barby, onde interromperam a marcha. “Berlim não é mais um alvo militar”, explicara o comandante-em-chefe americano, na pessoa do general Dwight D. Eisenhower, aos perplexos comandantes das tropas. A cidade pertencia aos russos, assim havia sido acordado; portanto, a guerra na região norte do império havia chegado ao fim para os americanos. Enquanto isso, o marechal-de-campo Walter Model, após haver repetidamente recusado diversas propostas de rendição, acabou suspendendo a batalha na bacia do Ruhr e dispensando seu grupo do exército. Mais de 300 mil soldados alemães e trinta generais foram presos. “Será que fizemos tudo ao nosso alcance”, perguntou Model ao seu chefe de Estado-Maior, “para que nossa atitude seja justificável perante a história? Ou resta algo a fazer?” Após mirar o vazio durante um instante, acrescentou: “Antes, os generais vencidos tomavam veneno.” Não muito tempo depois, ele acabou fazendo o mesmo. Havia semanas que Hitler se sentia perseguido pela desgraça. Uma linha de defesa após a outra havia sucumbido, a começar pela grande ofensiva do Exército Vermelho na Hungria, o levante das guerrilhas sob o comando de Tito, a queda das fortalezas de Kolberg e Königsberg. Milhares de notícias alarmantes, embora menos significantes, que chegavam diariamente. Além disso, havia as divergências com Guderian, chefe de Estado-Maior que, nesse ínterim havia sido substituído, e com o obstinado Speer, que, em fins de março, chegara a perder a fé “no prosseguimento vitorioso da guerra”. “No meio de toda a traição que me circunda”, teria dito Hitler, “apenas a infelicidade me permanece fiel - a infelicidade e minha pastora alemã, Blondi.” A corrente de notícias ruins só pareceu romper-se uma vez, quando Goebbels, na noite de 13 de abril, sem fôlego e com voz esganiçada gritou ao telefone: “Meu Führer, parabéns! Está escrito nas estrelas que, na segunda metade de abril, a sorte virará para o nosso lado. Hoje é sexta-feira, 13 de abril!” Ele continuou, explicando que o presidente Roosevelt falecera e que, na reunião de generais, ministros e chefes de partidos convocada imediatamente, esperanças havia muito desvanecidas reascendiam em função da conjunção dos planetas, ascendentes e trânsitos no quadrante. Com um maço de papéis na mão trêmula, Hitler ia de um a outro, dando a impressão de estar ligeiramente ausente, enquanto dizia, com a determinação de um velho: “Aqui está! Vocês nunca quiseram acreditar! Quem tem razão agora?” Ele indicava o milagre da Casa de Brandemburgo, que havia salvado o grande Frederico II, em 1762: “O milagre”, dizia ele, “se repetirá! A guerra não está perdida! Leiam! Roosevelt morreu!” Como tantas vezes em sua vida, parecia que, mais uma vez, a Providência provava ter juízo e, literalmente, no último momento, colocava-se a seu lado. Desde sempre, ele havia procurado persuadir seu entorno de que o “concubinato repugnante” das forças inimigas se desfaria em breve e, antes de ser tarde demais, a Inglaterra, bem como os Estados Unidos, ainda acabariam reconhecendo-o como defensor da cultura comum contra os bárbaros do Oriente. Ele assegurava, agora, que a morte de Roosevelt era o esperado sinal para uma guinada das alianças e que o fim da guerra no Ocidente era iminente. Durante algumas horas, o bunker era uma euforia só, na qual se combinavam a sensação de alívio e de confiança, com a expectativa da vitória em breve. No decorrer da noite, entretanto, à medida que a farsa do ilusionismo era desmascarada, a angústia reprimida voltava à tona, sobretudo quando chegou a notícia de que o Exército Vermelho havia conquistado Viena. De acordo com as informações de um dos presentes, a essa altura Hitler se encontrava “esgotado em sua poltrona, um misto de libertado e atordoado; a impressão que dava era de desesperança”. Na verdade, a morte do presidente não teve nenhuma influência no desenrolar da guerra. Em janeiro, após a derrota da ofensiva nas Ardenas, Hitler retornara a Berlim e alojara-se, a princípio, na Nova Chancelaria. Não demorou muito e os constantes ataques aéreos expulsaram-no de lá e levaram-no a acomodar-se no abrigo antiaéreo, onde ele, finalmente, se sentia à vontade, segundo alguns observadores. A onipresente fobia, que sempre havia exercido total domínio sobre sua pessoa, já se manifestara em 1933, alguns meses após haver sido proclamado chanceler, quando ordenou uma série de reformas no prédio da Chancelaria do Império e, como uma das medidas imprescindíveis, determinou a construção de um subsolo reforçado tipo bunker. Pode-se deduzir o quão obsessivo era esse desejo pela insistência com que repetia: “Bunker, e mais uma vez bunker”, em conversas com o arquiteto Albert Speer. Até mesmo o salão de festas no jardim atrás da Chancelaria, que havia sido projetado pelo arquiteto Leonhard Gall em 1935, foi construído com um abrigo antiaéreo, cujo teto tinha uma espessura de quase 2,5 metros, posteriormente reforçado com mais um metro. Três anos depois, com a construção do novo prédio da Chancelaria do Império, projetado por Albert Speer, mais ambientes protegidos foram acrescentados. No andar térreo, havia mais de noventa células de concreto que acompanhavam a extensão da Vosstrasse. Elas estavam conectadas ao bunker sob o salão de festas por um corredor subterrâneo de, aproximadamente, 80 metros. Após a derrota catastrófica às portas de Moscou, no inverno de 1941, os temores de Hitler se reacenderam fazendo-o crer que nem esse extenso sistema de bunker seria suficiente. Apesar de seus exércitos ocuparem, na época, a imensa região entre Stalingrado e Hammerfest, estendendo-se até Trípoli, ele ainda incumbiu o escritório de Speer com um projeto para a construção de mais uma catacumba, alguns metros mais profunda. Ela estaria conectada ao abrigo sob o salão de festas que, desde então, passou a se chamar de “pré-bunker” e contava com uma cantina para os funcionários mais próximos a Hitler, alguns salões de entretenimento e dormitórios. Somando-se, ainda, a cozinha e os quartos dos empregados, o subterrâneo contava 16 ambientes. Atrás da Chancelaria, no jardim de árvores altas e caminhos silenciosos, onde, algumas gerações antes, Bettina von Arnim havia escrito para Goethe que morava “aqui, num paraíso”, os trabalhadores tomaram conta novamente, derrubando árvores, trazendo material e equipamentos - betoneiras, armações para concretagem, além de pilhas de tábuas - para, então, começarem as obras. No início de 1945, o bloco de concreto do bunker do Führer estava quase pronto, mas a construção de guaritas e torres de vigia ainda levara algum tempo, de forma que, em abril desse ano, o trabalho ainda não havia chegado a termo. Nas instalações do porão sob a Nova Chancelaria do Império, encontravam-se as dependências do entourage de Hitler, como de seu poderoso secretário, Martin Bormann; e de seu último chefe do Estado-Maior, Hans Krebs, junto com seus assistentes; do general Burgdorf; e do piloto-chefe de Hitler, general Hans Baur; do líder de grupo da SS, Hermann Fegelein, que substituía Himmler no QG do Führer; e mais incontáveis oficiais, além das secretárias de Hitler, dos vigias, ordenanças, radiotelegrafistas, cartógrafos; e de outros funcionários. Uma parte dos ambientes estava equipada para servir como hospital militar de emergência; outra, como refúgio para desabrigados em conseqüência de bombardeios, grávidas e, aproximadamente, duzentas crianças, cujo número crescia a cada dia provocando uma superpopulação insuportável. Descendo uma escada em espiral, chegava-se do assim chamado “pré-bunker” ao bunker do Führer. As medidas, principalmente, do teto de concreto, são desconhecidas. Entretanto, já que a base com suas placas de fundamento de 2 metros de espessura encontrava-se a, aproximadamente, 12 metros do nível do jardim, e levando-se em conta o mezanino de quase 3 metros com as instalações de abastecimento, parece que os 4 metros freqüentemente mencionados, quando se tratava da espessura do teto, conferem. Já no início da década de 1930, Konrad Heiden, primeiro biógrafo de Hitler, soube sintetizar numa expressão inesquecível a essência do “Führer” e de seu movimento, uma combinação de páthos, arrogância e agressividade, descrevendo-os como “jactância em fuga”. Agora, com o recolhimento de Hitler na profundeza do bunker, de onde transmitia brados de vitória, parecia que aquela observação, freqüentemente tida como absurda, não era mais que a verdade. O bunker do Führer abrangia quase vinte recintos pequenos, sobriamente mobiliados, com exceção da parte do corredor que ficava em frente aos aposentos particulares de Hitler, onde havia alguns quadros, um banco estofado e algumas poltronas velhas. Ao lado, encontrava-se a sala de conferências, na qual eram feitos os informes, e que dá uma idéia do aperto generalizado, pois levava até vinte pessoas a comprimir-se em volta da mesa de cartas, em uma sala de 14 metros quadrados, durante muitas horas, várias vezes por dia. Os dois ambientes que compunham os aposentos de Hitler também eram decorados com parcimônia. Sobre o sofá, havia uma natureza-morta de origem holandesa e, sobre a escrivaninha, numa moldura oval, um retrato de Frederico, o Grande, pintado por Anton Graff, diante do qual o Führer freqüentemente se sentava em meditativa ausência, como se dialogasse com o rei. Ao pé da cama, havia um cofre, no qual Hitler guardava seus papéis pessoais; e, num canto, como já tinha por hábito no quartel-general de Rastenburg, ele mantinha uma garrafa de oxigênio para serenar a aflição permanente de poder vir a sofrer de falta de ar, principalmente no caso de defeito nos motores diesel, que forneciam luz, calefação e ar fresco ao bunker. A iluminação era fornecida por bulbos de lâmpadas instalados diretamente no teto de cada recinto, que lançavam uma luz fria nos rostos e tornavam ainda mais perceptível o mundo fantasmagórico no qual todos se movimentavam. Quando, ocasionalmente, havia falta de água nos dias que antecederam o fim, principalmente o pré-bunker exalava um fedor insuportável, que misturava os vapores dos motores diesel - que trabalhavam num zumbido contínuo - com o cheiro penetrante de urina e de transpiração. Em muitos corredores de ligação para o bunker inferior, havia poças oleosas, e a água potável tinha que ser racionada. Muitas testemunhas relataram como aquele ambiente apertado, de concreto e artificialmente iluminado pesava sobre os ânimos; e Goebbels confidenciou ao seu diário que procurava evitar aqueles recintos o máximo possível, para não se tornar vítima da “desolação reinante”. Não foi, portanto, sem motivo, que se chegou à conclusão de que o cenário subterrâneo contribuiu para as decisões irreais que foram tomadas, nas quais exércitos de fantasmas eram convocados para operações de ataque que jamais aconteceram, e batalhas para fechar o cerco eram deflagradas apenas na imaginação. Parecia que o próprio Hitler era o mais afetado pelo cotidiano numa caverna a 10 metros de profundidade. Tudo, nele, tornara-se ainda mais patente: sua pele, que já era viscosa havia anos, as feições ultimamente intumescidas, e as bolsas escuras e inchadas sob os olhos. Bastante curvado e com movimentos estranhamente oscilantes, ele andava muito próximo às paredes do bunker, como se procurasse apoio. Em função dos efeitos, muitos observadores mais perspicazes tinham a impressão de uma caducidade dramaticamente simulada. Pela primeira vez, ele dava sinais de negligência. Seu uniforme, até então impecável, apresentava manchas de restos de comida; nos cantos dos lábios, havia migalhas de bolo; e sempre que segurava os óculos com a mão esquerda, ao fazer um relato da situação, eles batiam de leve no tampo da mesa. Às vezes, ele os colocava de lado, como se tivesse sido pego em flagrante, já que o tremor dos membros contradizia seu lema, que uma vontade resoluta pode tudo. “Mesmo que minha mão trema”, ele haveria garantido a uma delegação de antigos combatentes, “e mesmo se minha cabeça começar a tremer, meu coração jamais tremerá.” Um oficial do Estado-Maior descreveu da seguinte forma o aspecto de Hitler durante aquelas semanas: “Ele sabia que tinha perdido a oportunidade e que não tinha mais como ocultar o fato. Fisicamente, seu aspecto era horrível. Cansada e pesadamente, jogando a parte superior do corpo para a frente e arrastando as pernas atrás de si, ele se movimentava dos seus aposentos para a sala de conferência no bunker. Faltava-lhe a sensação de equilíbrio; quando era parado no curto percurso (20 a 30 metros), tinha de se sentar em um dos bancos dispostos nas paredes do corredor com esse propósito, ou se segurar no interlocutor... Os olhos estavam injetados; embora todos os documentos destinados a ele fossem escritos em 'máquinas de escrever do Führer', cujas letras tinham três vezes o tamanho das normais, ele precisava de lentes grossas para lê-los. No canto dos lábios, via-se com freqüência saliva...” Algumas pessoas também tinham a impressão de que Hitler decaía mentalmente a cada dia. Quando costumava voltar às seis da manhã dos informes noturnos, jogava-se no sofá para ditar as instruções do dia seguinte para uma de suas secretárias. Assim que ela entrava na sala, ele se levantava com dificuldade, segundo uma delas, “para, novamente, deixar-se cair exausto no sofá; quando, então, o criado suspendia seus pés num descanso. Ele permanecia estendido em completa apatia, com um único pensamento: chocolate e bolo. Seu desejo insaciável por bolo tornou-se absolutamente obsessivo. Se antes comia, no máximo, três pedaços, agora pedia que enchessem o prato até três vezes”. Outra secretária reclamou da perceptível monotonia com que, freqüentemente, falava: “Ele, que antes conversava apaixonadamente sobre todos os temas, agora só sabia falar sobre cães e adestramento, nutrição, e a ignorância e maldade do mundo.” Apenas diante de visitas ele era capaz de se libertar da soturnidade de seus sentimentos e conseguia recuperar seu poder sugestivo e domínio sobre a persuasão. Costumava fazer uso de uma lembrança, do nome de um experiente comandante ou de uma insignificância grandiloqüente para encorajar a si próprio e à visita; e construía, em sua fantasia, a partir de palavras-chave fortuitas, forças combatentes imensas que já estavam a caminho dos portões da cidade para dar início à batalha decisiva. Afinal, os russos lutavam com “mercenários”, asseverava, e a supremacia de que se vangloriavam não passava “do maior blefe desde Gêngis Khan”. Ele sempre retomava a “arma milagrosa”, que provocaria a guinada definitiva e envergonharia todos os pusilânimes. Embora estivesse enfraquecendo a olhos vistos, Hitler não abria mão do comando das operações. Um misto de perseverança e de consciência da missão que tinha sempre o reanimavam; acrescente-se, ainda, uma desconfiança dilacerante que o levava a crer que seus generais pretendiam expô-lo ou, até, entorpecê-lo com a ajuda de seu médico, Dr. Morell, e, assim, tirá-lo de Berlim. Apesar de conseguir controlar-se de um modo geral, às vezes, era tomado de cólera e, uma vez, esbravejara, com os punhos em riste e tremendo por todo o corpo, contra seu chefe do Estado-Maior, Guderian, que chegou a dispensar nos últimos dias de março. A sua solidão era patente agora. De quando em quando, um morador do bunker ficava observando como Hitler se esforçava para subir a estreita escada que levava à saída para o jardim, mas desistia no meio do caminho, extenuado, e dava meia-volta; e como, freqüentemente, ia para o lavatório ao lado do corredor central, onde se encontrava o canil. Demoradamente e com uma expressão estranhamente vazia, ele brincava com sua pastora e os cinco filhotes os quais ela dera à luz no início de abril. Do lado de fora, além dos muros de concreto de vários metros de espessura, grassavam os caprichos de uma guerra terminal por seu esgotamento e miséria, uma guerra que já temia uma desforra. Nenhuma das frases doutrinadas sem cessar pelo aparato propagandístico justificava essa realidade e o contínuo medo da morte que a acompanhava. É bem verdade que os adereços no cenário montado de crença, honra e fidelidade ainda surtiam efeito sobre uma minoria. A grande massa, no entanto, há tempos já suspeitava do páthos daquelas fórmulas. Todo aquele que havia conseguido manter o juízo ou que o havia recuperado com o fim iminente não queria saber mais nada de palavras de perseverança ou citações acerca de bastiões, sobre as quais o império se ergueu, como herói solitário, contra a nova cavalaria apocalíptica formada pelo judaísmo mundial, o bolchevismo e a plutocracia; palavras e citações que relembravam a sorte ou a honra do prestígio perdido e, mais uma vez, comemoravam aquela idealização do desprezo pela vida, que, no passado, exercera tamanha atração sobre a alma alemã. Com as frentes de batalha fragmentadas, o material de defesa insuficiente e o horror diário e sem fim, era impossível não ouvir aquele som surdo, característico de tais chamamentos. “Vingança, nossa virtude! Ódio, nosso dever!” era o clamor para sustentar a defesa. “Corajosos e fiéis, orgulhosos e altivos, transformaremos nossos fortes em valas comuns das hordas soviéticas... Sabemos, como todos, que a hora que antecede a aurora é a mais escura. Pensem nisso, quando o sangue escorrer pelos olhos durante a batalha e a escuridão envolvê-los. O que quer que aconteça, a vitória é nossa. Morte aos bolchevistas! Viva o Führer!” Visto Hitler haver ordenado, logo no início da grande ofensiva russa, que todas as forças disponíveis fossem para a frente oriental e defendessem Berlim já às margens do Oder, a cidade e seu entorno ficaram desprovidos de tropas experientes e suficientemente armadas. O tenente-general Hellmuth Reymann, comandante de batalha dessa cidade, que já adquirira status de fortaleza em 1º de fevereiro, repetia, com freqüência, que precisava de, pelo menos, 200 mil soldados experientes. Em vez disso, ele não dispunha nem da metade desse número, arrebanhado de sobras de um Corpo de Blindados, do Regimento da Guarda, de algumas unidades casuais oriundas das diversas armas, bem como, aproximadamente, quarenta batalhões de colunas civis, formados, em sua maioria, de aposentados e uns 4 mil adolescentes da Juventude Hitlerista. Acrescente-se a eles algumas unidades de pioneiros, bem como as tropas destacadas para fazer a defesa antiaérea da cidade. As unidades da SS e da polícia que se encontravam em Berlim, no entanto, não respondiam ao seu comando. Todos os pedidos de reforço de Reymann eram negados por Hitler com a alegação de que havia tropas, tanques e munição suficientes no caso de haver uma batalha por Berlim. O pior era que, em nenhum momento, existiu um plano de defesa concreto. Algo que teria demandado um trabalho em equipe e investimento em tempo e treinamento, agora, tinha de ser improvisado às pressas, de acordo com a ocasião. Além disso, Reymann via-se, continuamente, enredado em disputas sobre quem tinha a autorização de comando. Às vezes, as ordens chegavam do Alto Comando do Exército, sob o marechal-de-campo Wilhelm Keitel; outras, do chefe de Estado-Maior, general Hans Krebs; e ainda outras, de Heinrici. Além do mais, Hitler interrompia freqüentemente a cadeia de comando com sugestões, cuja inconstância acompanhava a volubilidade de seu humor, de forma que o comandante das Forças de Defesa de Berlim nunca conseguia ter clareza sobre a situação. O caos na organização ainda era reforçado por Goebbels, que, como chefe do distrito de Berlim, acumulava a função de comissário de defesa do Reich. Desde que a “guerra total” por ele advogada fracassara devido à oposição generalizada, ele via, agora, a oportunidade de impor seu intento, tendo recebido, inclusive, a autorização de Hitler para formar batalhões femininos. Em todas as discussões referentes ao posicionamento e emprego das tropas, Goebbels, acossado pela inveja, insistia em afirmar que era o único responsável pela defesa da cidade. Por conseguinte, ele via Reymann como seu subalterno e exigia sua presença, em seu gabinete, durante as reuniões. Nesse galimatias de atribuições contraditórias, de constante troca de pessoal, de conversas cruzadas no âmbito do comando, bem como de falta de clareza sobre as forças e recursos disponíveis, produzia-se uma confusão que tolhia mais do que beneficiava a defesa da cidade. Além disso, Goebbels, sem levar em conta as determinações dos militares, criava suas próprias “disposições de defesa” e, por exemplo, convocava um “Grande Conselho de Guerra” às segundas-feiras, no qual reunia vários comandantes, altos líderes da SS e da SA,2 além do presidente da Câmara Municipal, do presidente da corporação policial da capital do Reich, até influentes representantes da indústria. Dia após dia, sua “Tropa de Recrutamento” saía com a missão de esquadrinhar firmas privadas e serviços públicos atrás de civis aptos para o front. Os números que ele apresentava, no entanto, não surpreendiam mais, mesmo depois de ter transformado aquele grupinho aflito de civis num regimento impaciente por entrar em ação na luta “pelo Führer e pela pátria”. Ao mesmo tempo, por outro lado, havia uma falta crônica de tudo o mais: tanques, artilharia e armas individuais, combustíveis e equipamento militares de todo o tipo. No zoológico, unidades de colunas civis treinavam o ataque inimigo, arrastando-se sobre o solo enquanto, ao lado, escondidos no mato, seus companheiros batiam com pedaços de pau em latas vazias para imitar tiros de metralhadoras. Em outro lugar, rolos de papelão eram moldados para o treinamento com bazucas ou barreiras de rua eram construídas com paralelepípedos, veículos destruídos durante ataques aéreos, estrados de camas e toda sorte de tralha. Cada civil que fazia parte da tropa de combate dispunha, e somente no caso de ter um fuzil, de munição para cinco tiros. Mas isso nem sempre era uma vantagem. Enquanto as armas, geralmente, eram de produção alemã ou tcheca, os cartuchos vinham da Itália, França ou outros países que já haviam sido aliados ou inimigos da Alemanha em outras guerras. Somados havia, além de espingardas de caça e demais fins esportivos que a população havia sido obrigada a entregar, mais de 15 tipos de fuzis, bem como incontáveis tipos de munições. Nada combinava com nada. Era a imagem da desorganização que se estampava do lado alemão. E, de fato, unidades de colunas civis e do exército marchavam por várias das largas ruas de acesso aos subúrbios para defendê-los e encontravam-se com outras unidades do outro lado da rua que tinham a missão de defender o aeroporto de Tempelhof ou o porto Westhafen, próximo ao Centro. O general Reymann havia afirmado que todos que não fossem aptos para o serviço militar podiam abandonar a cidade. Ao mesmo tempo, contudo, Goebbels havia ordenado que um edital fosse afixado à porta de cada casa, segundo o qual, “por ordem do Führer [...] todos os homens de 15 a 70 anos” deveriam cumprir o chamamento às fileiras, sem exceção. “Quem se esconde covardemente nos abrigos antiaéreos”, finalizava, “acabará numa corte marcial e será punido com a morte.” Apenas os propagandistas continuavam infatigáveis. Goebbels afirmava, com frio cinismo, que, dia após dia, eles davam o melhor de si para motivar os medrosos: uma descrição detalhada do horror que seria uma “Europa Bolchevista”, com as pilhas de mortos, mulheres violadas e crianças massacradas. E Bormann completava dizendo que a mesma história podia ser recontada sempre de outra forma, impregnando essas imagens cruéis que despertariam a determinação para a guerra e acabariam, até mesmo, dissolvendo a coalizão inimiga. Desde o início da segunda quinzena de abril, quando os jornais berlinenses haviam suspendido suas publicações, a tática usada para levantar o moral era, convenientemente, espalhar rumores. As vitórias dos aliados, segundo supostas “fontes fidedignas”, não passariam de uma estratégia de guerra do Führer, que haveria atraído o inimigo, propositadamente, o máximo possível para o interior do país, de forma a poder eliminá-lo de vez, no último momento, quando não sobraria “homem, cavalo ou carroça”. Ou disseminavam-se boatos, segundo os quais, o general Krebs haveria entrado em contato com os russos e lembrado ao ditador soviético o período em que havia sido adido militar em Moscou, quando fora publicamente abraçado e beijado por ele, assim comovendo Stalin, que teria evocado a “Irmandade de Armas” de outrora. Ou ainda, cursava a opinião de um suposto “perito militar”, cuja conclusão era que, nesta hora decisiva, todos aqueles anos de resistência aos bombardeios, em impotente desespero, tornavam-se agora favoráveis e afortunados, por haverem preparado Berlim justamente para o seu papel na luta corpo-a-corpo. Como repetidamente comprovado pela história militar de todos os tempos, nas lutas homem a homem nas ruas e construções, o defensor tem, notoriamente, vantagem sobre o agressor. Também se falava de submarinos com “projéteis estratosféricos” que reduziriam Nova York a pó, bem como de granadas de gelo, com sua névoa ácida. A população ouvia o discurso bizarro com um ceticismo crescente e, freqüentemente, mordaz. A propaganda, segundo um ditado popular, seria como a banda do navio que vai a pique: enquanto é puxada para o fundo, ela repete sempre as mesmas melodias animadas já que as demais partituras se encontram na administração. Os Tribunais de Campo motorizados descreviam de forma mais exata a situação real e o estado de espírito reinante. Nessa época, eles caçavam, ininterruptamente, desertores pelas ruas, em casas, empresas e ruínas. Caso surgisse a mais insignificante suspeita, eles atiravam nos “traidores” ou enforcavam-nos incontinenti. Em 15 de fevereiro de 1945, Hitler determinou a criação de tribunais especiais, com autonomia sobre todos os tipos de delito “que ameaçassem tanto a força de combate quanto a determinação para o combate”. Esses tribunais eram formados por um juiz, um representante do partido e um oficial do exército ou da SS armadas. Dez dias depois, Himmler criou um corpo adicional de conselhos de guerra especiais; e, logo depois, em 9 de março, foi criado um “conselho de guerra ambulante”, sob o general-tenente Rudolf Hübner, que recebia ordens diretamente de Hitler. Parecia que a esperança que restava era obtida, apenas, mediante ameaças de punição. Com isso, os informantes dos serviços secretos relataram, em meados de abril, que a confiança da maioria da população em seus líderes se esvaía de forma vertiginosa. Cada vez mais funcionários públicos, constatou Goebbels irritado, desapareciam como por encanto; o partido “havia perdido sua importância”. Tanto mais indignados ficavam os que descobriam que, desde meados de março, em muitas áreas da cidade, dezenas de pessoas executadas pendiam de árvores e postes, e, como que para potencializar a intimidação, havia barricadas e barreiras de tanques. Por motivos óbvios, não há dados sobre o número exato. Estimativas cuidadosas arriscam perto de mil vítimas executadas nos três últimos meses da guerra. Alguns comandantes estavam tão indignados com a selvageria que ordenaram suas tropas - a exemplo do general-major Hans Mummert, comandante da Divisão Blindada “Müncheberg” - a enfrentar os juizados especiais, se necessário fosse, de arma em punho. A derrota era fato consumado e a continuação era uma guerra que transcendia seu fim. Lá longe, brilhava o fogo-fátuo de esperanças despropositadas. Gerda Bormann, esposa de Martin Bormann, escreveu ao seu marido que a situação a lembrava do Crepúsculo dos Deuses, na Eda:3 “Os gigantes e os anões, o lobo, Fenris, e a cobra, Mitgard, todas as forças do mal [...] atiravam-se sobre as pontes dos deuses [...]. O castelo dos deuses balança e tudo parece perdido. Mas eis que se eleva novo castelo, mais bonito que jamais dantes, e Baldur vive, novamente.” Ela enveredava por uma das rotas de fuga mais familiares, a fuga da realidade para o lugar-comum mítico. Mas essa fuga terminava repentinamente porque não acompanhava os bastidores em ruínas das cidades incendiadas, nem a trajetória dos refugiados pelas ruas, nem o caos crescente por todo lado. Também não passava pela urgência pertinaz e irresistível com a qual os aliados, tanto ocidentais quanto orientais, conquistavam um território cada vez maior do país. A resistência sucumbia visivelmente. Em qualquer “lugar algum”, aonde ordens não chegavam, encontravam-se unidades em processo de desmembramento. Entrementes, Hitler comandava apenas alguns postos afastados que, aparentemente, estavam nas mãos de fanáticos, além de uma área em torno da cidade que se reduzia paulatinamente. Não obstante tudo isso, o que se passava durante aqueles últimos dias da guerra parecia conter uma energia desesperada, que tinha como objetivo patente transformar a derrota em uma catástrofe. Caso não vençamos, havia dito Hitler já no início dos anos 1930, quando fantasiava sobre a guerra por vir, “então, durante o nosso colapso, arrastaremos meio mundo junto no ocaso”. Agora, era hora de concretizar sua previsão.

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