quarta-feira, 26 de outubro de 2005

O saque, a variante terrorista da corrupção de J. Varela Gomes

Em rigor, trata-se mesmo de saque e não apenas de corrupção. Quero eu dizer na minha que aquilo que, efectivamente, se passa neste nosso infeliz País se aproxima mais do conceito de saque que da banalizada imagem da corrupção administrativa.

Num sentido tradicional, o assalto selvagem que a burguesia arrivista neoliberal está movendo contra o Estado/Nação – visando, em última análise, a sua destruição... a apropriação dos bens patrimoniais colectivos... a dilapidação dos fundos públicos em proveito próprio – configura a licenciosidade concedida à tropa invasora quando assalta e conquista cidades inimigas ou quando os piratas procedem a pilhagem dos navios capturados.

Isso mesmo está acontecendo, isto é, temos vindo a assistir a cenas de pilhagem da riqueza e dos bens nacionais protagonizadas por políticos burgueses, cujo comportamento é o de verdadeiros inimigos do Estado, de predadores insaciáveis e sem escrúpulos. Aliás, tornou-se corrente ouvir, nas mais variadas circunstâncias, a sentença "O País está a saque".

Deve notar-se que a sentença assim expressa é de gravidade ético/política bastante superior à comum constatação da existência da corrupção... descrita como um vírus, uma chaga, um cancro, uma espécie de doença endémica que está corroendo a sociedade portuguesa.

A burguesia capitalista, nas suas infinitas metamorfoses de sobrevivência (com as quais mal sonhou Karl Marx), já absorveu há muito a corrupção no seu código genético. (Na realidade, o fenómeno da corrupção já aparece discutido nos Diálogos socráticos da "República", vai para 2.500 anos, donde se poderia concluir – dentro do mais ortodoxo marxismo – que a corrupção é componente orgânico, universal, do poder, mormente, quando exercido por classes e indivíduos cujo objectivo primacial é a satisfação dos interesses próprios e da classe a que pertencem). Nos tempos modernos, o dogma do "fatalismo da corrupção" está integrado na religião capitalista liberal, tendo-se tornado fenómeno quotidiano, encarado com naturalidade, sem pudor ou vergonha. Nem sequer será precisa grande dose de sarcasmo para afirmar que o vigarista/corrupto é o herói iconográfico do regime democrático bi-partidário, imposto ao Mundo através da cruzada imperialista americana.

Em Portugal, a corrupção banalizou-se ao fim de 30 anos de democracia constitucional, acompanhada da tolerância e impunidade de que gozam os seus mais exímios executantes.

Esta realidade histórica, embora nos custe admitir, representa um formidável trunfo ideológico da classe burguesa capitalista, que assim entra triunfante neste século XXI da era cristã.

Entretanto, admitindo como um dado adquirido a praxis corruptora nas sociedades democráticas do Ocidente cristão que seguem o evangelho da economia libertária, é altura de reconhecer e identificar a variante terrorista do saque – puro e duro, sem restrições – que se encontra em pleno desenvolvimento, designadamente, nos países pobres do chamado Terceiro Mundo e nas débeis economias periféricas, cuja esperança de progresso reside na invasão turística e num duvidoso investimento estrangeiro. Nesta última categoria está, evidentemente, o nosso País.

Em qualquer dos casos – em África, na América Central ou do Sul, na periferia do Leste e Sul da Europa –, os bandos arrivistas instalados na manjedoura do poder por via da cruzada democrática bi-partidária (as ditaduras dos filhos de puta amigos dos States também servem de exemplo) já muito comeram e devoraram nos respectivos países. Em Portugal, são 30 anos de regabofe, como é sabido.

Todavia "eles", os boys & girls do carreirismo partidário burguês, em vagas sucessivas, querem sempre mais. Entram famintos pelos corredores e antecâmaras da governança, exigindo tachos e conezias, reclamando privilégios e favorecimentos ilícitos, etc., etc.. Há que procurar novas pastagens, inventar truques para ladear restrições legais (e, principalmente, orçamentais), multiplicar as comissões, missões, altos-comissários, os contractos especiais, assaltar os remanescentes redutos da independência estatutária profissiona e, finalmente, preparar a Grande Operação de Saque contra o Estado/Nação, destinada a desmantelá-lo para melhor partilhar/partidarizar/privatizar os restos e lançá-los à voragem das clientelas e lobbies.

Nos dias que correm (meados de Setembro de 2005), com campanhas eleitorais autárquicas e presidenciais misturadas, ambos os lideres dos maiores partidos – supostos rivais – debitam o mesmo discurso, proclamam enfaticamente a mesma panaceia para curar todos os males da Pátria: "Morte ao Estado e ao seus servidores"; "Partir a espinha à Função Pública", nomeadamente, professores, magistrados e militares.

Com franqueza, ilustres políticos da nossa praça, desgraçados ilusionistas que a ninguém iludem! Falando a sério. Não tendes consciência que toda a gente está farta de saber que a vossa classe, respectivos familiares e amigos, colegas de partido e de negócios... que todos vocês vivem e engordam à custa do Estado? Matar a galinha dos ovos de ouro?! Não brinquem connosco. Vocês, o que querem é levar a galinha para o vosso quintal. Deixem-se de retóricas farisaicas.

A estratégia de ataque contra "o monstro burocrático estatal", compartilhada por todos os partidos burgueses portugueses, tem, seguramente, inspiração e respaldo imperialista. Tradição antiga, com raízes em 1975, na abjecta contra-revolução, na altura obrigada a usar máscara socialista. Aliás, essas raízes deram árvore frondosa numa região do País que, há muito, atingiu o ideal americano – o vosso ideal – de democracia totalitária. Refiro-me, claro está, ao arquipélago da Madeira com o vosso bem alimentado cacique... à custa do "malvado" Estado do cótinente cubano. (Sendo nós, ao fim e ao cabo, contribuintes continentais, os "cubanos" esmifrados pelo vilhão madeirense).

Os argumentos economicistas que tentam justificar os ataques à administração pública convertem-se em motivo de escárnio geral quando cotejados com os escândalos vindos a lume quase diariamente.

Funcionários públicos em excesso? Mas é notório e sabido que cada novo governo mal é empossado começa a destacar hordas de apaniguados para ocuparem o aparelho de Estado! Em poucos meses são milhares. Não só na administração central, mas ainda mais nas direcções regionais dos vários sectores, nas empresas públicas e municipais, institutos, etc. A cada nova vaga de arrivistas/assaltantes correspondem outros tantos milhares de funcionários desalojados. São os excedentes. Outro método muito usado de criar excedentes consiste nas consultorias externas. Escritórios e empresas privadas são contratados para realizar trabalhos desde sempre da competência dos quadros orgânicos. Estes ficam desocupados... acusados de baixa produtividade. Os "privados" contratados acabam amiúde admitidos na função pública.

São infinitas as manigâncias inventadas por esta gente dos partidos para sofismar as restrições legais (em particular, as orçamentais). Seria necessário um Livro Negro de milhares de páginas para se fazer ideia aproximada. Podemos apenas imaginá-las a partir de alguns casos ocasionalmente mencionados pela comunicação social.

Um exemplo, recentíssimo: o assalto ao Tribunal de Contas. A manobra, aliás, foi iniciada em Maio de 2004 pela então ministra das Finanças PSD/CDS, Manuela Ferreira Leite, quando contratou um tal Paulo Macedo para director-geral das Contribuições e Impostos (DGCI) pelo ordenado milionário de 16.000 euros por mês, mais extras, entre os quais o pagamento de mais 3.700 euros por mês para o fundo privado de pensões de S. Exa.! Tudo isto ao arrepio das normas vigentes na administração pública. Novo governo PS e o milionário Macedo permanece inamovível. Até ao presente, o Estado já pagou ao sujeito 275.000 euros... só em vencimentos. Sócrates finaliza a manobra: neste mês de Setembro nomeia quatro novos directores gerais da área das Finanças; e anuncia a designação para presidente do Tribunal de Contas de um quadro proeminente do PS, Oliveira Martins. Depois de Salazar, o governo passa a controlar totalmente a alavanca fundamental do poder: as Finanças e seus fiscais. O cacique Alberto João apressou-se aplaudir a manobra: o modelo madeirense, da democracia totalitária, impunha-se no cótinente. Só imaginar podemos quantas centenas de boys & girls, de camisolinha rosa vestida vão engrossar as fileiras do "monstro burocrático" nas belas e rendosas funções de fiscais das contas do Estado... incluindo as do partido a que ficam devendo o tacho.

Nas três maiores empresas do Estado – Caixa Geral dos Depósitos, Galp e Telecom – o assalto está consumado... e quase esquecido/absorvido. Com retoques e requintes de rara fineza: a Telecom ofereceu tachos aos filhos dos políticos mais dedicados à causa do bem público – entre vários outros, Guterres, Marcelo Rebelo de Sousa e, para que haja moralidade, os filhos do dr. Jorge Sampaio. Também sem aflições de desemprego continuam Cavaco Silva, com 9.000 euros de pensões e honorários; Ferro Rodrigues, feito embaixador à pressão, com outros 9.000; e correligionários avulso, depois de breve estágio em virtuais assessorias, nomeados apesar da interdição ética solenemente proclamada por Sócrates. Nestes últimos dias veio a lume o escândalo do "contracto" (textual!) de António Vitorino, deputado do PS, como advogado particular da Galp. Descobre-se que Vitorino é sócio de um escritório de advogados acabado de comprar pela Iberdola... empresa com negócios importantes na área dos combustíveis, cujo representante em Portugal é Pina Moura, militante e antigo ministro do PS. É o saque, puro e duro, sem restrições nem pudor!

O horizonte próximo não augura bom tempo.

A nau do Estado navega acossada por barcos piratas hasteando bandeiras partidárias. À proa, conhecidos veteranos de muitas capturas e saques. Mesmo disfarçados com paleta no olho e perna de pau, há quem distinga por estibordo (a amurada enganadora), numa velha escuna de velame esfarrapado, o jerarca Soares; à bolina, numa nave melhor aparelhada, assobiando para um pequeno papagaio empoleirado na mezena (faz lembrar alguém do PSD), o Tony Blair português poupa munições, aguardando o afundanço do outro corsário.

Estará a tripulação da nau do Estado em condições de repelir o assalto e o saque das barcaças piratas? É lícito duvidar-se, visto ser sabido que a tripulação está altamente desmoralizada e, em grande parte, infiltrada por elementos piratas.

O original encontra-se no semanário Alentejo Popular , edição de 13/Outubro/2005.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

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